Renato Dolabella 1

Lívia Costa 2

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou o Recurso Especial nº 1772593/RS, no qual o autor da ação pleiteou danos morais por ter sido filmado em um estádio durante a partida de futebol do seu time, tendo essa gravação sido usada para uma campanha publicitária de um automóvel. O caso reacendeu uma dúvida recorrente entre os realizadores de eventos, especialmente os de maior porte: quais são os limites para uso da imagem das pessoas que estiverem na plateia? A pergunta é bastante comum, sobretudo porque é frequente a prática de registos fotográficos ou audiovisuais dos espectadores.

Inicialmente, deve-se destacar que a Constituição da República de 1988 (CR/88) prevê a inviolabilidade da imagem, sendo devida indenização no caso de desrespeito a esse direito3. Nesse sentido, o artigo 20 do Código Civil detalha melhor a questão, deixando claro que a utilização da imagem poderá ser proibida se isso atingir a honra, a boa fama ou a respeitabilidade da pessoa, ou ainda no caso de uso para fins comerciais4.

Assim, deve haver uma ponderação de cada caso concreto, até porque muitas vezes o uso da imagem alheia é justificado por questões de interesse público, como o direito à informação, liberdade de imprensa e administração da justiça, por exemplo5.

Na mesma linha, deve-se notar que o próprio artigo 20 do Código Civil prevê duas situações distintas: os casos de efetivo dano à pessoa que teve sua imagem violada e as situações de uso comercial. Por essa interpretação literal, a princípio, entende-se que a exposição comercial sem autorização do titular da imagem implicaria em dever de indenização, independentemente de haver dano à honra do retratado ou qualquer situação similar nesse sentido. Entretanto, o julgamento realizado pelo STJ mostra que é preciso avaliar a questão mais a fundo.

Como já indicado, no Recurso Especial nº 1772593/RS houve pedido de danos morais por uso não autorizado de imagem de um torcedor, captada durante uma partida de futebol e utilizada em uma campanha publicitária. A princípio, seria uma hipótese vedada pelo artigo 20 do Código Civil, já que houve uso comercial, inclusive destoando até mesmo do contexto do evento esportivo que o titular da imagem compareceu.

Contudo, o STJ considerou que o caso não era passível de indenização porque, segundo o Tribunal Superior, não houve destaque da imagem do Recorrente, que teria sido apresentada no meio de diversos outros torcedores. Assim, mesmo entendendo que não haveria consentimento para o uso da imagem (nem mesmo tácito, já que a propaganda não tinha qualquer relação com a participação do torcedor no estádio), não seria caso de condenação. Deve-se notar que essa fundamentação se valeu da doutrina de Sérgio Cavalieri Filho, que acentua que a imagem é a “emanação de uma pessoa, através da qual projeta-se, identifica-se e individualiza-se no meio social” 67.

Com isso, o julgamento feito pelo STJ deixou claro que as vedações ao uso de imagem alheia não são absolutas. No caso, uma vez que a veiculação não destacou o torcedor no meio da multidão, não haveria dever de indenizar, mesmo com o uso publicitário com fins comerciais. Porém, é fundamental notar que essa decisão se baseou especialmente nos detalhes da situação concreta, não podendo ser entendida como uma autorização geral para uso de imagem dos espectadores. Isso porque é perfeitamente possível que filmagens ou fotografias façam registros que destaquem a pessoa em questão, ao contrário do que ocorreu no caso julgado pelo STJ.

Assim, é recomendável que os promotores de eventos sempre adotem cautelas, como comunicar de forma clara e inequívoca que haverá registro fotográfico ou audiovisual da plateia. Isso pode ser feito de várias formas, como indicação nos ingressos (de preferência em destaque) e avisos sonoros antes do evento. Nessa mesma comunicação, é importante explicar a possibilidade de a pessoa manifestar sua oposição, cabendo então à produção, uma vez provocada, tomar as medidas cabíveis então para evitar o registro dessa pessoa. Dessa forma, será possível compatibilizar, de forma mais segura, as particularidades que envolvem a realização de eventos com o direito constitucional de proteção à imagem.

Renato Dolabella Melo
Lívia Costa de Oliveira

Artigo publicado em 21/10/2020
Permitida a livre reprodução deste texto, desde que concedidos os créditos aos autor
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Referências

  1. Advogado. Doutor e Mestre em Propriedade Intelectual e Inovação pelo INPI. Mestre em Direito Econômico pela UFMG. Pós-graduado em Direito de Empresa pelo CAD/Universidade Gama Filho – RJ. Palestrante e professor de Propriedade Intelectual, Direito Econômico e da Concorrência, Direito do Consumidor, Direito da Cultura e do Entretenimento e Terceiro Setor em cursos de pós-graduação, graduação, capacitação e extensão da Fundação Dom Cabral – FDC, do IBMEC, da PUC, da Escola Superior de Advocacia da OAB, de Music Rio Academy, da Faculdade CEDIN e da Faculdade Arnaldo. Contatos: www.dolabella.com.br e [email protected]
  2. Advogada. Pós-graduada em Direito Processual pela PUC Minas. Pós-graduada em Legal Tech: Direito, Inovação e Startups pela PUC Minas. Bacharel em Direito pela PUC Minas. Contato: [email protected]
  3. CR/88

    Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

    (…)

    X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

  4. Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
  5. “Os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna (Princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas). Desta forma, quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual (contradição dos princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com sua finalidade precípua”. (MORAES, Alexandre de. Direito constitucional.13. ed. São Paulo: Atlas, 2003. Pg. 61)
  6. “Não haverá, igualmente, violação à imagem se esta não for distinguível, como, por exemplo, fotografias ou imagens de multidão nas quais não há destaque de alguma pessoa ou de alguma característica marcante. (…) Em suma, se a imagem for capturada no contexto do ambiente, aberto ao público, de forma que a imagem adira ao local (praia, apresentação esportiva, movimento de rua), ou a algum acontecimento (acidente, manifestação pública), nenhuma lesão haverá à imagem”. (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 13ª ed. São Paulo: Atlas, 2019. p. 153)
  7. Como se vê, o cenário delineado nos autos revela que as filmagens não destacam a imagem do recorrente, senão inserida no contexto de uma torcida, juntamente com vários outros torcedores. E se a imagem é, nas palavras de Sérgio Cavalieri Filho, a “emanação de uma pessoa, através da qual projeta-se, identifica-se e individualiza-se no meio social”, não há falar em ofensa a esse bem personalíssimo se não configurada a projeção, identificação e individualização indevida da pessoa nela representada.