Renato Dolabella¹
No dia 18/08/20, foi publicado o Decreto federal 10.464/20, destinado a regulamentar a Lei Aldir Blanc (Lei 14.017/20) e as medidas de auxílio emergencial ao setor cultural em função da pandemia do covid-19. A União estava condicionando o repasse de recursos para Estados e Municípios a essa regulamentação, que finalmente foi feita, quase dois meses após a edição da própria Lei.
Porém, além do extenso prazo para elaboração de uma medida que se diz emergencial, o texto do Decreto é uma fonte maior de questionamentos e regras burocráticas do que de soluções para a crise enfrentada pelo setor cultural. Incialmente, deve-se ressaltar que a maior parte da regulamentação é simplesmente uma cópia da Lei 14.017/20, o que não acrescenta nada em termos práticos.
Um ponto efetivamente novo foi a separação das competências de cada ente público em relação aos instrumentos de aplicação dos recursos. Estados e Distrito Federal ficarão responsáveis pela distribuição da renda emergencial para pessoas físicas, além da elaboração de editais para prêmios, aquisição de bens e serviços e outras medidas em prol do setor cultural. Essas ferramentas estão previstas nos incisos I e III do artigo 2º da Lei Aldir Blanc, devendo ser observados os seguintes critérios básicos para que os profissionais possam ser beneficiados: ter atuado nas áreas artística e cultural nos vinte e quatro meses antes da publicação da LAB; não ter emprego formal ativo; não receber benefício previdenciário/assistencial, seguro-desemprego, programa de transferência de renda federal (ressalvado o Programa Bolsa Família) e nem o auxílio emergencial geral previsto na Lei 13.982/20 para enfrentamento do covid; ter renda familiar mensal per capita de até meio salário-mínimo ou renda familiar mensal total de até três salários-mínimos, o que for maior; não ter recebido, em 2018, rendimentos tributáveis acima de R$ 28.559,70; estar inscrito e homologado em algum dos cadastros previstos na legislação². Cumpridos esses requisitos, o trabalhador da área cultural pode receber três parcelas de R$600,00 a título de renda emergencial.
Aos Municípios caberá o pagamento de subsídio mensal para espaços culturais (de R$3.000,00 a R$10.000,00 mensais), além dos editais que também serão realizados pelos Estados e DF, instrumentos previstos nos incisos II e III do artigo 2º da Lei Aldir Blanc. Da mesma forma que foi exigido para os beneficiários pessoas físicas, os espaços culturais deverão estar inscritos e homologados em algum cadastro cultural previsto no artigo 6º do Decreto 10.464/20. Além disso, é requisito para recebimento do subsídio a realização de atividades destinadas, prioritariamente, aos alunos de escolas públicas ou de atividades em espaços públicos de sua comunidade, de forma gratuita. A proposta dessa contrapartida deverá ser apresentada junto com a solicitação do benefício, devendo ainda o beneficiário prestar contas do uso dos recursos em até 120 dias após o recebimento da última parcela. Não poderão pleitear o repasse os espaços culturais criados ou vinculados à administração pública de qualquer esfera, fundações, institutos ou instituições criados ou mantidos por grupos de empresas, e espaços geridos pelos serviços sociais do Sistema S.
Aqui já é possível notar alguns problemas contidos na regulamentação, que criou a exigência de homologação, pelo Ministério do Turismo, dos dados dos beneficiários e cadastros culturais. Porém, além de não esclarecer como isso será feito, deve-se notar que o governo federal levou quase dois meses para editar o Decreto, o que não sugere exatamente a existência de uma estrutura ágil o suficiente para tratar da questão emergencial que é objeto da Lei Aldir Blanc. Nesse contexto, deve-se também indagar qual será o prazo necessário para verificação e homologação, pelo Ministério, de todos os dados que devem ser colhidos nos cadastros de Estados, DF e Municípios. Sem tal medida, o Decreto 10.464/20 literalmente proíbe o pagamento dos auxílios. Mais ainda: ameaça textualmente o agente público que fizer qualquer pagamento em desacordo com essas regras com sanções nas esferas civil, administrativa e penal. Assim, temos um paradoxo: a Lei Aldir Blanc previu uma descentralização dos recursos emergenciais (o que faz todo sentido, considerando a extensão e diversidade do país), mas sua regulamentação acaba condicionando as ações de Estados, DF e Municípios a medidas que ainda devem ser realizadas pelo Ministério do Turismo.
Em relação aos editais, os entes públicos deverão apresentar um relatório de gestão à União ao final das ações, contendo tipos de instrumentos realizados e sua identificação; o total dos valores repassados por meio do instrumento; o quantitativo de beneficiários; a publicação em Diário Oficial dos resultados dos certames; a comprovação do cumprimento dos objetos pactuados nos instrumentos; e, na hipótese de não cumprimento integral das medidas, a identificação dos beneficiários e as providências adotadas para recomposição do dano. Aqui também há previsão de responsabilização pessoal do agente público que não cumprir tais obrigações. É natural que o uso de recursos públicos demande transparência e demonstração de aplicação dos valores. Porém, questiona-se se a regulamentação para a situação de emergência se mostra (ou não) razoável nesse ponto, considerando especialmente que milhares de Municípios que receberão os recursos são de pequeno porte e nem sempre terão estrutura para atender todos os requisitos impostos pelo Decreto. Nesse contexto, não é impossível que vários deles simplesmente abram mão dos recursos, especialmente pelo receio de responsabilização pessoal e direta do agente público. Certamente, isso seria uma situação extremamente danosa, pois, nesse caso, os Estados receberiam os recursos residuais e teriam apenas 60 dias para executá-los, com o mesmo nível de exigências trazido pela regulamentação.
Além disso, o Decreto 10.464/20 se mostra incompleto e incoerente ao determinar que Estados, DF e Municípios deverão ainda realizar regulamentos complementares para elaboração dos editais e aplicação dos recursos³. Ora, o repasse dos valores pela União sofreu um atraso de quase dois meses, sob a alegação que seria necessária regulamentação federal para execução dos mecanismos emergenciais. Quando o Decreto finalmente é publicado, o que ele efetivamente faz é criar amarras, centralizando no Ministério do Turismo a validação de dados, mas determinando aos demais entes públicos a tarefa de ainda definir como os instrumentos da Lei Aldir Blanc serão efetivados. Por uma questão de proximidade geográfica, é lógico considerar que Estados, Distrito Federal e Municípios conhecem melhor a sua própria realidade local, tendo maior capacidade do que a União para estabelecer políticas culturais regionais de maneira efetiva. Mas, se isso então é reconhecido pelo Decreto 10.464/20 como uma medida indispensável, por que então foi necessária a regulamentação federal, se ela é incapaz de resolver esse problema? Muito mais eficiente teria sido então a União fazer o repasse dos recursos nos termos definidos pela Lei 14.017/20, cabendo a Estados, DF e Municípios, desde o início, definirem a forma de aplicação efetiva dos auxílios, sempre respeitando as diretrizes básicas que a Lei Aldir Blanc estabeleceu claramente.
O resumo é que se perdeu tempo precioso aguardando a elaboração de uma regulamentação que, infelizmente, pouco faz para solucionar efetivamente os problemas enfrentados pelo setor cultural. Caberá agora a Estados, DF e Municípios agir com esforço redobrado para que os recursos não se percam. Vale destacar que há um prazo para que os entes públicos destinem ou programem a aplicação dos valores recebidos (60 dias para Municípios e 120 dias para Estados e DF). Além disso, após 31/12/20, quando o Decreto Legislativo 6/20 prevê o fim do período de calamidade pública, qualquer saldo de recursos deve ser obrigatoriamente devolvido à União. Tudo isso torna ainda mais urgente o trabalho de regulamentação local, que, no final das contas, não foi solucionado pelo Decreto 10.464/20 e ficará a cargo de Estados, DF e Municípios.
Por fim, é fundamental destacar que a cultura, além da sua relevância social para a formação dos cidadãos, é também extremamente importante do ponto de vista econômico. Estudo da Fundação Getúlio Vargas mostrou que cada R$1,00 investido em um evento cultural pode gerar de retorno até R$13,00 em toda a cadeia econômica envolvida4. Logo, as medidas emergenciais têm também o potencial de gerar uma reação positiva em cadeia, o que é extremamente necessário no momento de crise que vivemos. Porém, como demonstrado acima, a condução do tema até o momento não acompanhou esse senso de urgência. Resta agora aos Estados, DF e Municípios o desafio de tentar compensar isso com agilidade extraordinária, pois disso depende a subsistência de milhares de profissionais.
Renato Dolabella Melo
¹Advogado. Doutor e Mestre em Propriedade Intelectual e Inovação pelo INPI. Mestre em Direito Econômico pela UFMG. Pós-graduado em Direito de Empresa pelo CAD/Universidade Gama Filho – RJ. Palestrante e professor de Propriedade Intelectual, Direito Econômico e da Concorrência, Direito do Consumidor, Direito da Cultura e do Entretenimento e Terceiro Setor em cursos de pós-graduação, graduação, capacitação e extensão da Fundação Dom Cabral – FDC, do IBMEC, da PUC, da Escola Superior de Advocacia da OAB, de Music Rio Academy, da Faculdade CEDIN e da Faculdade Arnaldo. Contatos: www.dolabella.com.br e [email protected]
² Decreto 10464/20
Art. 6º Farão jus ao subsídio mensal previsto no inciso II do caput do art. 2º as entidades de que trata o referido inciso, desde que estejam com suas atividades interrompidas e que comprovem a sua inscrição e a homologação em, no mínimo, um dos seguintes cadastros:
I – Cadastros Estaduais de Cultura;
II – Cadastros Municipais de Cultura;
III – Cadastro Distrital de Cultura;
IV – Cadastro Nacional de Pontos e Pontões de Cultura;
V – Cadastros Estaduais de Pontos e Pontões de Cultura;
VI – Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais;
VII – Sistema de Informações Cadastrais do Artesanato Brasileiro; e
VIII – outros cadastros referentes a atividades culturais existentes no âmbito do ente federativo, bem como projetos culturais apoiados nos termos da Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991, nos vinte e quatro meses imediatamente anteriores à data de publicação da Lei nº 14.017, de 2020.
³ Decreto 10.464/20
Art. 2º, § 3º Para a execução das ações emergenciais previstas no inciso III do caput, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios definirão, em conjunto, o âmbito em que cada ação emergencial será realizada, de modo a garantir que não haja sobreposição entre os entes federativos.
§ 4º O Poder Executivo dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios editará regulamento com os procedimentos necessários à aplicação dos recursos recebidos na forma prevista neste artigo, no âmbito de cada ente federativo, observado o disposto na Lei nº 14.017, de 2020, e neste Decreto.
Art. 9º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão elaborar e publicar editais, chamadas públicas ou outros instrumentos aplicáveis, de que trata o inciso III do caput do art. 2º, por intermédio de seus programas de apoio e financiamento à cultura já existentes ou por meio da criação de programas específicos.
§ 1º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão desempenhar, em conjunto, esforços para evitar que os recursos aplicados se concentrem nos mesmos beneficiários, na mesma região geográfica ou em um número restrito de trabalhadores da cultura ou de instituições culturais.
4 “FGV apresenta método para medir impacto econômico cultural”. Disponível em http://pnc.cultura.gov.br/2018/12/11/fgv-apresenta-metodo-para-medir-impacto-economico-cultural/
Artigo publicado em 18/08/2020
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