Prestação de contas de projetos: o dever de fundamentação pela Administração Pública e o direito à defesa das OSCs

Saiba como deve exigir o parecer técnico do órgão público em prestação de contas e garantir o direito de defesa da OSC antes de devolver qualquer valor

Mariana Mendes A. S. Campos1

A transparência é um dever recíproco

A prestação de contas não é apenas uma obrigação burocrática — é uma expressão concreta da transparência e da responsabilidade na gestão dos recursos públicos. Ao comprovar como cada valor foi aplicado, a OSC reafirma seu compromisso com a legalidade e com a finalidade social do projeto.

Entretanto, o mesmo rigor exigido das entidades deve ser observado pela Administração Pública. Toda decisão administrativa precisa ser fundamentada, sob pena de nulidade.

É aqui que reside o problema. Temos observado decisões de indeferimento ou glosa de despesas em processos de prestação de contas que carecem de motivação adequada. São atos que determinam devoluções vultosas de recursos sem explicitar quais despesas foram questionadas, por qual razão e com base em qual dispositivo legal ou normativo.

Esse tipo de conduta administrativa viola frontalmente os princípios da motivação e da legalidade e os direitos ao contraditório e à ampla defesa, transformando um instrumento de controle em uma fonte de insegurança jurídica.

Decisões sem motivação não são apenas injustas — são ilegais

A ausência de motivação é um vício substancial que invalida o ato administrativo. O dever de motivar não é um capricho jurídico: ele é o que garante que o poder público atue de forma racional, transparente e controlável.

Sem a devida fundamentação, o indeferimento de contas se converte em um ato arbitrário. A OSC não sabe o que foi glosado, por que motivo, nem como se chegou ao valor que supostamente deve ser restituído. Nessa situação, a defesa técnica se torna inviável, e o processo administrativo perde legitimidade.

A consequência prática é grave: valores são lançados em dívida ativa, transformando-se em cobranças formais, execuções fiscais e restrições que podem até inviabilizar a celebração de novas parcerias.

Para muitas organizações — especialmente aquelas cuja sustentabilidade depende de parcerias públicas — uma glosa indevida pode representar o colapso financeiro. Além disso, uma penalização sem fundamento mina a confiança em todo o sistema de colaboração entre Estado e sociedade civil.

A importância de exigir o parecer técnico fundamentado e o risco de ficar em silêncio

Diante de qualquer decisão de indeferimento de contas, a atuação da entidade deve ser imediata, formal e técnica. O primeiro passo é requerer, por meio de petição protocolada ou ao menos por algum meio escrito, a íntegra do parecer técnico que fundamentou a decisão administrativa.

Esse documento é a espinha dorsal do processo: nele devem constar as despesas questionadas, os fundamentos legais e os critérios utilizados definir os valores glosados. Sem essa fundamentação, o ato administrativo é incompleto e, portanto, passível de reconhecimento da sua nulidade.

ALei nº 9.784/1999, que regula o processo administrativo federal, em seu artigo 50, é inequívoca: todo ato administrativo deve ser motivado, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos que o sustentam:

Art. 50. Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando:

I – neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses;

II – imponham ou agravem deveres, encargos ou sanções;

Contudo, é igualmente importante que a entidade não se omita diante de uma nulidade do ato administrativo.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) consolidou entendimento no sentido de vedar a chamada “nulidade de algibeira” — expressão utilizada para designar a conduta de quem deixa de apontar um vício processual no momento oportuno, para alegá-lo apenas mais tarde, quando conveniente.

Em diversas decisões, o STJ tem afirmado que a parte deve agir com boa-fé processual e não pode se beneficiar de nulidade que poderia ter sanado se tivesse sido alegada após o conhecimento do vício.

Aplicando esse raciocínio ao contexto das prestações de contas, significa dizer que a entidade precisa pedir a motivação da decisão assim que for notificada e identificar que a decisão tem esse vício. Não é prudente aguardar para alegar a nulidade em momento posterior.

Além disso, é importante solicitar a devolução de prazo para que a entidade responda à glosa de despesas, contado a partir da disponibilização dos motivos da rejeição de contas. Afinal, é apenas partir do conhecimento dos motivos completos do ato administrativo que a entidade tem plenas condições de elaborar a sua resposta e exercer de forma plena o seu direito de defesa.

Em outras palavras, a falta de motivação torna o ato nulo, mas a inércia da entidade pode inviabilizar o reconhecimento dessa nulidade. O processo administrativo é também um espaço de diálogo institucional — e cabe à entidade demonstrar sua boa-fé e sua diligência, exigindo o cumprimento da lei no momento certo. Ademais, é direito da entidade ter o prazo adequado para a análise dos motivos da glosa de despesas e responder adequadamente, apresentando os seus argumentos e buscando reverter a situação.

Como agir: peça fundamentação, recorra e conte com apoio jurídico especializado

Quando uma decisão administrativa indefere contas ou determina devolução de recursos, a entidade deve adotar uma postura técnica e proativa:

1. Solicite formalmente a fundamentação

Com base no art. 50 da Lei nº 9.784/1999, protocole um pedido formal de acesso ao parecer técnico de indeferimento. Esse documento deve indicar, de forma detalhada, quais despesas foram questionadas, os fundamentos legais aplicados e o cálculo do valor glosado.

2. Solicite a devolução do prazo de defesa

Com a ciência dos motivos da decisão é que a entidade terá plenas condições de apresentar a sua defesa. Para evitar que parte do prazo de defesa seja consumido aguardando o parecer fundamentado, peça para que ele seja contado a partir da disponibilização dos motivos do indeferimento das contas.

3. Analise o parecer com apoio técnico

Com a ajuda de uma assessoria jurídica especializada, analise minuciosamente cada apontamento. Em muitos casos, o problema decorre de documentação incompleta ou erros formais facilmente sanáveis.

4. Apresente um recurso administrativo bem fundamentado

Com base na análise técnica, elabore um recurso administrativo estruturado, abordando cada item questionado. É importante demonstrar que os recursos foram aplicados corretamente, que o objeto foi cumprido e que qualquer falha formal não comprometeu o resultado do projeto.

5. Invista em assessoria jurídica preventiva

Mais do que atuar apenas em momentos de crise, a entidade deve manter uma assessoria jurídica especializada desde o início da execução do projeto. Um acompanhamento técnico adequado previne falhas na documentação e reduz o risco de glosas injustas na fase de análise das contas.

Conclusão

Toda decisão administrativa deve ser clara, fundamentada e coerente com os fatos e a lei. Quando o órgão público deixa de apresentar a motivação do ato, fere o direito da entidade de compreender, responder e corrigir eventuais falhas.

Do outro lado, cabe à entidade agir com boa-fé: exigir a fundamentação, compreender a decisão e recorrer de forma consistente, sempre com o apoio de profissionais especializados no terceiro setor e no direito administrativo.

Mais do que uma formalidade, a motivação é o que assegura a justiça, a transparência e a confiança entre o poder público e as organizações que transformam recursos em impacto social.

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Permitida a livre reprodução deste texto, desde que concedidos os créditos aos autores

  1. Advogada. Pós-graduada em Direito Público pela PUC Minas. Pós-graduada no MBA em Advocacia de Alta Performance pela PUC Minas. Secretária Geral da Comissão de Direito das Parcerias Intersetoriais e Organizações da Sociedade Civil da OAB/MG. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG.  ↩︎