INVESTIMENTOS EM OBRAS MUSICAIS E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA DE DIREITOS AUTORAIS

Renato Dolabella[1]

Mariana Mendes A. S Campos[2]

Recentemente, o cantor Neil Young vendeu os direitos autorais sobre 50% do seu catálogo musical para a Hipgnosis Song Fund. O acordo confere à compradora os direitos sobre 1.180 obras do cantor canadense, e acontece após Bob Dylan ter vendido toda a sua discografia, composta por mais de 600 canções, para a Universal Music[3].

Os debates sobre investimentos em direitos autorais têm ganhado corpo, especialmente por se mostrarem potencialmente lucrativos para os envolvidos. Porém, é importante lembrar que, no Brasil, há uma legislação específica que deve ser observada para validade dessas operações. A Lei de Direitos Autorais (9.610/98) considera as composições musicais como bens móveis, dentro das obras intelectuais que são protegidas independente de registro[4]. Porém, é importante notar que o direito de autor possui natureza híbrida na legislação brasileira, que abrange direitos morais e direitos patrimoniais. Há diferencias entre essas duas categorias, o que afeta a possibilidade ou não de sua transmissão a terceiros.

Os direitos morais asseguram certas prerrogativas ao autor, de modo a valorizar a pessoa que teve o trabalho intelectual para gerar a criação. Entre outras possibilidades, o criador pode se opor a usos que afetem a integridade da obra ou prejudiquem sua honra ou reputação. Também deve ter seu nome ou pseudônimo divulgado em qualquer uso, sendo-lhe sempre dado o devido crédito de autoria. Sobre essas questões e as outras que são consideradas como direitos morais pela Lei 9.610/98, é importante notar que se tratam de prerrogativas inalienáveis e irrenunciáveis[5]. Logo, eventual contrato no qual um autor transfira seus direitos a um terceiro não alcançará e nem eliminará a existência dos direitos morais, que deverão sempre ser respeitados pelo adquirente das obras.

Já os direitos patrimoniais de autor são aqueles relativos ao uso, fruição e disposição da obra intelectual, abrangendo inclusive a sua exploração comercial. Pela Lei 9.610/98, podem ser transferidos total ou parcialmente a terceiros, com ou sem limitação de tempo, desde que observadas as regras legais aplicáveis. No caso de uma alienação definitiva, as partes celebram um contrato de cessão, que deve obrigatoriamente ser feito por escrito e se presume oneroso[6]. Além disso, é fundamental lembrar que a legislação estabelece expressamente que os negócios referentes a direitos autorais sempre serão interpretados de forma restritiva[7]. Na dúvida, considera-se então que eventual autorização de uso que não esteja clara e expressamente autorizada não se encontra liberada. Essa questão é de grande importância na redação dos contratos, podendo haver problemas futuros na exploração dos direitos se isso não for corretamente conduzido na elaboração dos documentos que formalizam o acordo entre autores e investidores.

Firmado o acordo conforme as regras legais, o cessionário poderá explorar os direitos patrimoniais sobre a obra nos termos combinados. Porém, como já indicado, devem ser observadas as limitações previstas na legislação brasileira. Além da proibição de transferência dos direitos morais, é importante destacar também que a cessão só será válida para modalidades de utilização já existentes na data do contrato[8]. Logo, a exploração das obras por meio de novas formas de uso deve ser pactuada em novos contratos ou aditivos, sob pena de serem configuradas como não autorizadas e, portanto, sujeitas a questionamentos por parte do autor.

Além das questões referentes à legislação de direitos autorais, é fundamental notar que, dependendo da forma que o modelo de negócio de exploração das obras seja estruturado, pode haver também incidência de regras referentes ao mercado de valores mobiliários e captação de investidores. Nesse caso, devem-se observar também as instruções da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e demais normas pertinentes.

Assim, feitas essas breves observações, pode-se concluir que é possível a criação de estruturas jurídicas visando ganhos econômicos com base em direitos autorais. Porém, é fundamental levar em conta as normas nacionais para seu funcionamento no Brasil, especialmente porque esse tipo de modelo de negócio é comumente inspirado em experiências estrangeiras, onde a legislação pode ter diferenças sensíveis. Somente com atenção a todas as regras locais é que esse investimento poderá funcionar no Brasil com a segurança jurídica necessária para os envolvidos.

Renato Dolabella Melo

Advogado

Mariana Mendes A. S Campos

Advogada

Permitida a livre reprodução deste texto, desde que concedidos os créditos aos autores


[1] Advogado. Doutor e Mestre em Propriedade Intelectual e Inovação pelo INPI. Mestre em Direito Econômico pela UFMG. Pós-graduado em Direito de Empresa pelo CAD/Universidade Gama Filho – RJ. Palestrante e professor de Propriedade Intelectual, Direito Econômico e da Concorrência, Direito do Consumidor, Direito da Cultura e do Entretenimento e Terceiro Setor em cursos de pós-graduação, graduação, capacitação e extensão da Fundação Dom Cabral – FDC, do IBMEC, da PUC, da Escola Superior de Advocacia da OAB, de Music Rio Academy, da Faculdade CEDIN e da Faculdade Arnaldo. Presidente da Comissão de Direito das Parcerias Intersetoriais e Organizações da Sociedade Civil da OAB/MG. Membro da Comissão de Direito da Concorrência da OAB/MG. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG. Contatos: www.dolabella.com.br e [email protected]

[2] Advogada. Pós-graduada em Direito Público pela PUC Minas. Pós-graduanda no MBA em Advocacia de Alta Performance pela PUC Minas. Secretária Geral da Comissão de Direito das Parcerias Intersetoriais e Organizações da Sociedade Civil da OAB/MG. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG. Contato: [email protected]

[3] https://www.uai.com.br/app/noticia/musica/2021/01/06/noticias-musica,266756/depois-de-bob-dylan-neil-young-vende-a-participacao-de-suas-musicas.shtml

[4] Lei nº 9.610/98

Art. 3º Os direitos autorais reputam-se, para os efeitos legais, bens móveis.

Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como: (…) V – as composições musicais, tenham ou não letra;

Art. 18. A proteção aos direitos de que trata esta Lei independe de registro.

[5] Lei nº 9.610/98

Art. 27. Os direitos morais do autor são inalienáveis e irrenunciáveis.

Art. 49. Os direitos de autor poderão ser total ou parcialmente transferidos a terceiros, por ele ou por seus sucessores, a título universal ou singular, pessoalmente ou por meio de representantes com poderes especiais, por meio de licenciamento, concessão, cessão ou por outros meios admitidos em Direito, obedecidas as seguintes limitações: I – a transmissão total compreende todos os direitos de autor, salvo os de natureza moral e os expressamente excluídos por lei;

[6] Lei nº 9.610/98

Art. 49, II – somente se admitirá transmissão total e definitiva dos direitos mediante estipulação contratual escrita;

[7] Lei nº 9.610/98

Art. 4º Interpretam-se restritivamente os negócios jurídicos sobre os direitos autorais.

Art. 31. As diversas modalidades de utilização de obras literárias, artísticas ou científicas ou de fonogramas são independentes entre si, e a autorização concedida pelo autor, ou pelo produtor, respectivamente, não se estende a quaisquer das demais.

Art. 49, VI – não havendo especificações quanto à modalidade de utilização, o contrato será interpretado restritivamente, entendendo-se como limitada apenas a uma que seja aquela indispensável ao cumprimento da finalidade do contrato.

[8] Lei nº 9.610/98

Art. 49, V – a cessão só se operará para modalidades de utilização já existentes à data do contrato;